VÊ-ME
Cecília Monção
“Matsu deu-se conta de que, por fim, escutava o sorriso do homem. E ele sempre tinha modos melódicos de falar, cuidado em como falava para ser embelezado ao modo de ela ver. A cega, mais do que nunca, entendia o que era conhecer alguém e começava a dizer: conheço-te. Era a maneira mais exacta que tinha de afirmar que o via. O homem chegava a corar, envergonhado com o seu corpo, com a sua simplicidade diante da mulher que aprendera a amar. No mais genuíno amor todos as pessoas se envergonham. A cega dizia. Porque um sentimento tão profundo transcende a valentia. Era como se declarava também. E ele, deitado ao seu lado, sorria e ela, sem se cansar, sabia que ele sorria incapaz de conter a alegria de estarem juntos.
Iam ao meio do lago, distantes das margens e a escutar como a água se movia debaixo do pequeno barco, e paravam. Sozinhos, na extensa planura daquela superfície de água, o que dissessem era pertença apenas de um e outro. Diziam: obrigada a cada deus. E a menina Mtsu dizia: obrigada a cada deus. Pensava em Itaro. Pensavam: obrigada, meu irmão.
O homem pedia para que o tempo fosse lento. Para que o tempo se juntasse em torno deles e passasse quase nada. Porque consumia ávido cada instante sem se bastar de ficar perto dela. E ela pedia que aguardassem pelos peixes, que certamente lhe contariam novidades acerca do mais secreto do Japão. Riam-se. Seguravam a sombra carmim por sob os corpos e ficavam deitados a fazer contas ao sossego.
Ele dizia que, de verdade, o nível do lago subira. Algumas árvores no começo das encostas eram agora de pé na água. O barco passava-lhes pelas copas, elas certamente o pensariam a voar. Alguns pássaros se confundiriam nos caminhos. Talvez mergulhassem à procura de ninhos alagados ou ovos perdidos.
Matsu nunca prometeria parar de chorar. Acalmara, mas sabia bem que a felicidade se compunha da soma de muita tristeza também. Carregaria essa tristeza no seu pranto respeitoso, espaçadamente. E chorar seria também a sua mais íntima prova de gratidão.
O seu senhor lhe perguntava: que te posso oferecer. E ela respondia: um jardim seco. Um que seja quieto, de pedra, por onde possa correr os dedos e sentir como emita as ondas do mar. E ele disse: que sabes do mar. Ela respondeu: o que imagino. Apenas o que imagino. E gosto.”
FONTE
Capitulo “Escutar o sorriso”, do livro “Homens imprudentemente poéticos” de Valter Hugo Mãe
Cecília Monção
“Matsu deu-se conta de que, por fim, escutava o sorriso do homem. E ele sempre tinha modos melódicos de falar, cuidado em como falava para ser embelezado ao modo de ela ver. A cega, mais do que nunca, entendia o que era conhecer alguém e começava a dizer: conheço-te. Era a maneira mais exacta que tinha de afirmar que o via. O homem chegava a corar, envergonhado com o seu corpo, com a sua simplicidade diante da mulher que aprendera a amar. No mais genuíno amor todos as pessoas se envergonham. A cega dizia. Porque um sentimento tão profundo transcende a valentia. Era como se declarava também. E ele, deitado ao seu lado, sorria e ela, sem se cansar, sabia que ele sorria incapaz de conter a alegria de estarem juntos.
Iam ao meio do lago, distantes das margens e a escutar como a água se movia debaixo do pequeno barco, e paravam. Sozinhos, na extensa planura daquela superfície de água, o que dissessem era pertença apenas de um e outro. Diziam: obrigada a cada deus. E a menina Mtsu dizia: obrigada a cada deus. Pensava em Itaro. Pensavam: obrigada, meu irmão.
O homem pedia para que o tempo fosse lento. Para que o tempo se juntasse em torno deles e passasse quase nada. Porque consumia ávido cada instante sem se bastar de ficar perto dela. E ela pedia que aguardassem pelos peixes, que certamente lhe contariam novidades acerca do mais secreto do Japão. Riam-se. Seguravam a sombra carmim por sob os corpos e ficavam deitados a fazer contas ao sossego.
Ele dizia que, de verdade, o nível do lago subira. Algumas árvores no começo das encostas eram agora de pé na água. O barco passava-lhes pelas copas, elas certamente o pensariam a voar. Alguns pássaros se confundiriam nos caminhos. Talvez mergulhassem à procura de ninhos alagados ou ovos perdidos.
Matsu nunca prometeria parar de chorar. Acalmara, mas sabia bem que a felicidade se compunha da soma de muita tristeza também. Carregaria essa tristeza no seu pranto respeitoso, espaçadamente. E chorar seria também a sua mais íntima prova de gratidão.
O seu senhor lhe perguntava: que te posso oferecer. E ela respondia: um jardim seco. Um que seja quieto, de pedra, por onde possa correr os dedos e sentir como emita as ondas do mar. E ele disse: que sabes do mar. Ela respondeu: o que imagino. Apenas o que imagino. E gosto.”
FONTE
Capitulo “Escutar o sorriso”, do livro “Homens imprudentemente poéticos” de Valter Hugo Mãe