CONSTRANGIMENTO DE AMOR
Maria Ribeiro
Cheirava a podre e podridão. O estômago contraía-se daquele bafo. Voltou-se para ela e enfrentou.
Ela não desviou os olhos. Não mexeu um músculo sequer. Deitada, ainda esperava por aquele homem de barba preta leviana. Todas as tardes esperava que o odor perfumasse os lençóis. Esta tarde não seria diferente, ela esperava-o e ele viria. Julgava ter comprado umas orquídeas brancas, mas não as via. Porque não as via em cima da mesinha de cabeceira? Teria deixado na mercearia da Antónia, junto com os alhos? Ou teria colocado na sala, junto ao retrato do avô? Ela vinha a esquecer-se de demasiadas coisas nos últimos dias. Ontem, foram as chaves e a prenda, hoje o euromilhões. E o que poderia ser amanhã ou depois de amanhã? Tinha decidido ir ao médico na próxima quinta-feira, mas esquecera-se de ligar a marcar consulta. Decidira apontar num post-it e colá-lo na porta do frigorífico, junto ao desenho da filha. Ainda se lembrava que tinha uma filha, uma filha que adorava flores, especialmente orquídeas brancas. A filha, ao contrário da mãe, tinha uma memória excelente e ainda hoje atirava lembranças. Lembranças velhas e gastas, corroídas por uma vida sem tempo, sem paciência, sem odor maternal… Sabia que nunca fora uma mãe prenha de carinhos, nunca quisera filhos, especialmente uma mulher. A sua filha nascera já mulher, cobiçando os afetos daquele homem que ela amava apaixonadamente. Fora num devaneio daquele amor que o seu homem a convenceu a prestar-se à gestação… Carregou-a no ventre, vendo a sua figura ficar irreversivelmente disforme e o corpo a aumentar. Sentiu-se uma parideira de rua quando a enfermeira lhe enfiou o braço para a endireitar. Mas nunca a endireitou e ela só conseguiu sentir dor, desde esse momento até ontem. Fazia 63 anos no mesmo dia em que a filha fazia 22 de privilegiada existência. Tinha comprado uma prenda, uma camisola de lã vermelha, mas esquecera-se dela em algum sítio. O marido ia ficar aborrecido, mas como também era o seu aniversário, não haveria drama. Afinal, ela comprara a prenda como havia prometido, só não sabia onde a deixara ficar. Tinham acordado jantar num novo restaurante da moda, com vista para a cidade, sugerido pela filha e questionado pela mãe. Comprometeram-se que seria um jantar agradável, onde não haveria atritos nem discussões, apenas cordialidade e formalismos básicos de convivência familiar. A mãe esboçou um sorriso quando percebeu que a filha estava gorda e o corte de cabelo não a favorecia. Depois, deliciou-se quando reconheceu o brilho que apareceu no olhar da filha dirigido a outro homem que não o seu. Respirou, finalmente respirou, deixou sair tranquilamente o ar dos seus pulmões e deixou entrar avidamente o amor pela sua filha. O constrangimento passara, já se lembrava onde tinha deixado a prenda e resolveu comprar-lhe orquídeas brancas e convidá-los a jantar.
A filha carente deixou-se envolver por aquele carinho, o pai estranhou, percebeu e sorriu, olhando para aquele moço com admiração. Amava aquela mulher e tudo lhe perdoava, pois sabia-a sua, na essência e na superfluidade, na aparência e na profundidade. Nunca ninguém o olhara como ela, nunca ninguém o venerara como ela e nunca mulher alguma se entregara como ela. Era apenas sua e ele sabia disso, não havia homem que fizesse desviar o olhar, nem vizinho que ela preferisse.
Agora, estavam os dois a olhar um para o outro, sem conseguir adivinhar os pensamentos, nem penetrar um num outro. Um olhar pleno de emoções confrontava outro olhar vazio de emoções, como se um véu tivesse caído entre os dois. O olhar verteu-se em lágrimas, contidas apenas pela barba preta, os braços puxaram-na uma última vez para si e abraçou-a. Abraçou-a sem a largar, era incapaz de a largar, como poderia fazê-lo e deixá-la naquele olhar pálido, escuro e vazio? Ela tirou o véu caído, mas não conseguiu apaziguar o seu homem, nem abraçar, nem beijar, nem falar, nem sorrir. Porque os seus braços e lábios não obedeciam à sua vontade, à sua persistência, à sua teimosia, à sua insistência? Porque não via as orquídeas brancas, porque não sentia o odor dele, os braços, o calor, mas apenas o frio? Um homem fardado separou-os, e ela olhou de novo para o seu homem de barba preta e lembrou-se das orquídeas. As orquídeas brancas estavam no chão, junto dos cacos vermelhos partidos que ela pisara enquanto tentava aproximar-se do seu leito. A dor, a dor tinha a empurrado para a cama, tal como empurrava agora o seu homem que sorria para ela.
PROCEDIMENTO
Constrangimento formal da narrativa: 5 frases com 5 palavras, 10 frases com 10 palavras, 15 frases com 15 palavras e 20 frases com 20 palavras.
Maria Ribeiro
Cheirava a podre e podridão. O estômago contraía-se daquele bafo. Voltou-se para ela e enfrentou.
Ela não desviou os olhos. Não mexeu um músculo sequer. Deitada, ainda esperava por aquele homem de barba preta leviana. Todas as tardes esperava que o odor perfumasse os lençóis. Esta tarde não seria diferente, ela esperava-o e ele viria. Julgava ter comprado umas orquídeas brancas, mas não as via. Porque não as via em cima da mesinha de cabeceira? Teria deixado na mercearia da Antónia, junto com os alhos? Ou teria colocado na sala, junto ao retrato do avô? Ela vinha a esquecer-se de demasiadas coisas nos últimos dias. Ontem, foram as chaves e a prenda, hoje o euromilhões. E o que poderia ser amanhã ou depois de amanhã? Tinha decidido ir ao médico na próxima quinta-feira, mas esquecera-se de ligar a marcar consulta. Decidira apontar num post-it e colá-lo na porta do frigorífico, junto ao desenho da filha. Ainda se lembrava que tinha uma filha, uma filha que adorava flores, especialmente orquídeas brancas. A filha, ao contrário da mãe, tinha uma memória excelente e ainda hoje atirava lembranças. Lembranças velhas e gastas, corroídas por uma vida sem tempo, sem paciência, sem odor maternal… Sabia que nunca fora uma mãe prenha de carinhos, nunca quisera filhos, especialmente uma mulher. A sua filha nascera já mulher, cobiçando os afetos daquele homem que ela amava apaixonadamente. Fora num devaneio daquele amor que o seu homem a convenceu a prestar-se à gestação… Carregou-a no ventre, vendo a sua figura ficar irreversivelmente disforme e o corpo a aumentar. Sentiu-se uma parideira de rua quando a enfermeira lhe enfiou o braço para a endireitar. Mas nunca a endireitou e ela só conseguiu sentir dor, desde esse momento até ontem. Fazia 63 anos no mesmo dia em que a filha fazia 22 de privilegiada existência. Tinha comprado uma prenda, uma camisola de lã vermelha, mas esquecera-se dela em algum sítio. O marido ia ficar aborrecido, mas como também era o seu aniversário, não haveria drama. Afinal, ela comprara a prenda como havia prometido, só não sabia onde a deixara ficar. Tinham acordado jantar num novo restaurante da moda, com vista para a cidade, sugerido pela filha e questionado pela mãe. Comprometeram-se que seria um jantar agradável, onde não haveria atritos nem discussões, apenas cordialidade e formalismos básicos de convivência familiar. A mãe esboçou um sorriso quando percebeu que a filha estava gorda e o corte de cabelo não a favorecia. Depois, deliciou-se quando reconheceu o brilho que apareceu no olhar da filha dirigido a outro homem que não o seu. Respirou, finalmente respirou, deixou sair tranquilamente o ar dos seus pulmões e deixou entrar avidamente o amor pela sua filha. O constrangimento passara, já se lembrava onde tinha deixado a prenda e resolveu comprar-lhe orquídeas brancas e convidá-los a jantar.
A filha carente deixou-se envolver por aquele carinho, o pai estranhou, percebeu e sorriu, olhando para aquele moço com admiração. Amava aquela mulher e tudo lhe perdoava, pois sabia-a sua, na essência e na superfluidade, na aparência e na profundidade. Nunca ninguém o olhara como ela, nunca ninguém o venerara como ela e nunca mulher alguma se entregara como ela. Era apenas sua e ele sabia disso, não havia homem que fizesse desviar o olhar, nem vizinho que ela preferisse.
Agora, estavam os dois a olhar um para o outro, sem conseguir adivinhar os pensamentos, nem penetrar um num outro. Um olhar pleno de emoções confrontava outro olhar vazio de emoções, como se um véu tivesse caído entre os dois. O olhar verteu-se em lágrimas, contidas apenas pela barba preta, os braços puxaram-na uma última vez para si e abraçou-a. Abraçou-a sem a largar, era incapaz de a largar, como poderia fazê-lo e deixá-la naquele olhar pálido, escuro e vazio? Ela tirou o véu caído, mas não conseguiu apaziguar o seu homem, nem abraçar, nem beijar, nem falar, nem sorrir. Porque os seus braços e lábios não obedeciam à sua vontade, à sua persistência, à sua teimosia, à sua insistência? Porque não via as orquídeas brancas, porque não sentia o odor dele, os braços, o calor, mas apenas o frio? Um homem fardado separou-os, e ela olhou de novo para o seu homem de barba preta e lembrou-se das orquídeas. As orquídeas brancas estavam no chão, junto dos cacos vermelhos partidos que ela pisara enquanto tentava aproximar-se do seu leito. A dor, a dor tinha a empurrado para a cama, tal como empurrava agora o seu homem que sorria para ela.
PROCEDIMENTO
Constrangimento formal da narrativa: 5 frases com 5 palavras, 10 frases com 10 palavras, 15 frases com 15 palavras e 20 frases com 20 palavras.