TENTATIVA DE ESGOTAMENTO DO MESMO LOCAL PARISIENSE
Jéssica Nardy
Tentativa de esgotamento do mesmo local parisiense
A data: 2 de novembro de 2019
A hora: 14:22
O local: Café de La Mairie
O tempo: Frio seco. Céu cinzento. Algumas raras aberturas.
Um homem espera algo ou alguém enquanto segura um capacete e fuma.
Uma mulher de casaco verde, parecido com o meu, vai ao seu encontro. Eles discutem em francês. Vão embora juntos.
Há cinco pessoas no ponto de ônibus.
Passa um ônibus 63.
Um homem de casaco vermelho.
Um homem de camisa rosa, muito rosa, e um cão.
Na parte de dentro, o café está repleto.
Na parte de fora, três das cinco mesas estão ocupadas.
Venta demais. O céu está cinza.
Passa um 96.
Passam carros o tempo todo.
Nosso café finalmente é trazido. Um pequeno pra mim e um grande pra ele.
Um homem de boina preta e casaco xadrez fuma um charuto, senta nas mesas externas do café, mas levanta em menos de três minutos.
Uma mulher usando óculos escuros espelhados azuis. Não faz sol.
Passa um ônibus, mas não consigo ver o número.
Muitos carrinhos de bebê.
Duas crianças em seus mini trotinetes na calçada.
De novo, venta muito forte.
Pessoas, aos montes, passando sempre.
Passa uma mulher com uma calça curta. Ninguém mais usa roupas de verão ou com alguma pele à mostra – só ela.
Passa um 70.
Sai de dentro do café um senhor e dois cães.
Passa um 96.
Sinto minha mão muito fria.
Um 63.
Um homem passa olhando pro seu telemóvel. Parece perdido.
Não há aberturas no céu e o vento não cessa.
Uma mulher que parece asiática: com certeza está perdida.
Uma família com duas crianças sentados no banco ao lado do café comem alguma coisa. O que comem?
Dois ônibus 86 chegam ao ponto ao mesmo tempo.
Quatro homens em trotinetes elétricos.
Outro homem de casaco vermelho.
Um casal de asiáticos. O homem tira uma foto do café com seu telemóvel.
Um 70.
O sol parece querer sair por alguns raros minutos. Sinto minhas mãos esquentando um pouco.
Muitas pessoas passam o tempo todo.
Uma mulher passa olhando pro seu telemóvel.
Mais um casal. Parecem perdidos. Olham pro telemóvel e decidem o caminho. Ele segura um guarda-chuva.
Um 96.
As pessoas parecem incomodadas com o vento e passam encolhidas.
Não há ninguém no ponto de ônibus.
Um senhor encosta a bicicleta em uma árvore em frente ao café e entra.
Duas mulheres se sentam nas mesas externas à minha frente, que estavam todas vazias até agora. Uma delas fuma elegantemente.
Um homem passa pedindo dinheiro a todas as mesas externas do café.
Mais crianças em seus mini trotinetes na calçada.
Um homem passa pedindo dinheiro.
Uma senhora, com cabelos longos e brancos, anda com duas bengalas e muita dificuldade. Ela sorri para um homem que parece bêbado e passa gritando alguma coisa em francês – deve ter achado graça.
Passa um 96.
O homem que parece bêbado começa agora a cantar.
Três homens sozinhos ocupam agora também as mesas à minha frente, cada um em uma mesa. Todos eles vestem casacos azuis escuros. Dois são velhos e um parece novo.
Um homem com fones de ouvido e telemóvel na mão.
Uma mulher com casaco e capuz com pelos – parece uma esquimó.
Passa um 70.
Um grupo passa em uma animada discussão em francês.
O sol aparece mais uma vez. Mais forte.
Um homem segura uma sacola em uma mão e come uma maçã com a outra mão.
Outro grupo, outra exaltada discussão em francês.
Pessoas passam olhando pros seus telemóveis. Muitas. Um homem tenta digitar uma mensagem e andar ao mesmo tempo.
Um carro muito grande e verde.
Me canso um pouco de escrever.
São 14:59.
Passa um 58.
Um casal perdido, ambos com telemóveis nas mãos.
Bate o sino da Igreja de Saint-Sulpice três vezes – são três horas da tarde.
Mal consigo ver a Igreja por causa das árvores em frente ao café.
Uma moto com um sidecar com duas mulheres e um homem. Aliás, três motos com sidecars estacionam na Rue des Canettes, ao lado do café.
Um 96. Outro em seguida.
As pessoas saem das motos e gritam alguma coisa, todas ao mesmo tempo.
Um casal passa e decide tomar um café. Eles se comunicam em português.
Uma senhora idosa, elegante e sozinha observa o movimento da rua da parte de dentro do café. Não vejo consigo nenhum telemóvel.
Percebo que as pessoas que estavam nas motos são italianos (ou pelo menos, se comunicam em italiano)
Mais pessoas que parecem perdidas, com seus telemóveis nas mãos.
Um homem empurra um carrinho de bebê com uma criança muito grande e muito loira dentro dele.
Um homem muito alto com anéis em todos os dedos.
Um senhor fumando um cachimbo entra no café.
Um 96.
Uma mulher correndo.
Um homem tossindo muito.
Um 86.
Tenho a sensação que minha mão direita congela. Estou com frio.
Pausa na escrita. Tenho vontade de pensar em outra coisa. Pego meu telemóvel.
Passa um 70.
Três homens saem de dentro do café. Um deles tropeça e quase cai.
Uma senhora, com um guarda-chuva muito colorido, entra no café.
Um homem com duas crianças. A menina que sentada em seus ombros tem parte do cabelo verde.
Uma mulher com um cigarro eletrônico branco.
São 15:15.
Venta muito, de novo. Sem sol.
Três pombas voando baixo.
Um homem ao telemóvel, fala bem alto enquanto passa na minha frente: oh, shit.
Uma mulher vestindo apenas peças de roupas da cor roxa. Inclusive a mochila.
Uma mulher com botas vermelhas.
Não há volta de indivíduos já vistos. São todos inéditos.
Uma bicicleta da Uber Eats.
O 70.
São 15:22.
PROCEDIMENTO
Inventário (homenagem a “Tentative d'épuisement d'un lieu parisien” de Georges Perec)
Jéssica Nardy
Tentativa de esgotamento do mesmo local parisiense
A data: 2 de novembro de 2019
A hora: 14:22
O local: Café de La Mairie
O tempo: Frio seco. Céu cinzento. Algumas raras aberturas.
Um homem espera algo ou alguém enquanto segura um capacete e fuma.
Uma mulher de casaco verde, parecido com o meu, vai ao seu encontro. Eles discutem em francês. Vão embora juntos.
Há cinco pessoas no ponto de ônibus.
Passa um ônibus 63.
Um homem de casaco vermelho.
Um homem de camisa rosa, muito rosa, e um cão.
Na parte de dentro, o café está repleto.
Na parte de fora, três das cinco mesas estão ocupadas.
Venta demais. O céu está cinza.
Passa um 96.
Passam carros o tempo todo.
Nosso café finalmente é trazido. Um pequeno pra mim e um grande pra ele.
Um homem de boina preta e casaco xadrez fuma um charuto, senta nas mesas externas do café, mas levanta em menos de três minutos.
Uma mulher usando óculos escuros espelhados azuis. Não faz sol.
Passa um ônibus, mas não consigo ver o número.
Muitos carrinhos de bebê.
Duas crianças em seus mini trotinetes na calçada.
De novo, venta muito forte.
Pessoas, aos montes, passando sempre.
Passa uma mulher com uma calça curta. Ninguém mais usa roupas de verão ou com alguma pele à mostra – só ela.
Passa um 70.
Sai de dentro do café um senhor e dois cães.
Passa um 96.
Sinto minha mão muito fria.
Um 63.
Um homem passa olhando pro seu telemóvel. Parece perdido.
Não há aberturas no céu e o vento não cessa.
Uma mulher que parece asiática: com certeza está perdida.
Uma família com duas crianças sentados no banco ao lado do café comem alguma coisa. O que comem?
Dois ônibus 86 chegam ao ponto ao mesmo tempo.
Quatro homens em trotinetes elétricos.
Outro homem de casaco vermelho.
Um casal de asiáticos. O homem tira uma foto do café com seu telemóvel.
Um 70.
O sol parece querer sair por alguns raros minutos. Sinto minhas mãos esquentando um pouco.
Muitas pessoas passam o tempo todo.
Uma mulher passa olhando pro seu telemóvel.
Mais um casal. Parecem perdidos. Olham pro telemóvel e decidem o caminho. Ele segura um guarda-chuva.
Um 96.
As pessoas parecem incomodadas com o vento e passam encolhidas.
Não há ninguém no ponto de ônibus.
Um senhor encosta a bicicleta em uma árvore em frente ao café e entra.
Duas mulheres se sentam nas mesas externas à minha frente, que estavam todas vazias até agora. Uma delas fuma elegantemente.
Um homem passa pedindo dinheiro a todas as mesas externas do café.
Mais crianças em seus mini trotinetes na calçada.
Um homem passa pedindo dinheiro.
Uma senhora, com cabelos longos e brancos, anda com duas bengalas e muita dificuldade. Ela sorri para um homem que parece bêbado e passa gritando alguma coisa em francês – deve ter achado graça.
Passa um 96.
O homem que parece bêbado começa agora a cantar.
Três homens sozinhos ocupam agora também as mesas à minha frente, cada um em uma mesa. Todos eles vestem casacos azuis escuros. Dois são velhos e um parece novo.
Um homem com fones de ouvido e telemóvel na mão.
Uma mulher com casaco e capuz com pelos – parece uma esquimó.
Passa um 70.
Um grupo passa em uma animada discussão em francês.
O sol aparece mais uma vez. Mais forte.
Um homem segura uma sacola em uma mão e come uma maçã com a outra mão.
Outro grupo, outra exaltada discussão em francês.
Pessoas passam olhando pros seus telemóveis. Muitas. Um homem tenta digitar uma mensagem e andar ao mesmo tempo.
Um carro muito grande e verde.
Me canso um pouco de escrever.
São 14:59.
Passa um 58.
Um casal perdido, ambos com telemóveis nas mãos.
Bate o sino da Igreja de Saint-Sulpice três vezes – são três horas da tarde.
Mal consigo ver a Igreja por causa das árvores em frente ao café.
Uma moto com um sidecar com duas mulheres e um homem. Aliás, três motos com sidecars estacionam na Rue des Canettes, ao lado do café.
Um 96. Outro em seguida.
As pessoas saem das motos e gritam alguma coisa, todas ao mesmo tempo.
Um casal passa e decide tomar um café. Eles se comunicam em português.
Uma senhora idosa, elegante e sozinha observa o movimento da rua da parte de dentro do café. Não vejo consigo nenhum telemóvel.
Percebo que as pessoas que estavam nas motos são italianos (ou pelo menos, se comunicam em italiano)
Mais pessoas que parecem perdidas, com seus telemóveis nas mãos.
Um homem empurra um carrinho de bebê com uma criança muito grande e muito loira dentro dele.
Um homem muito alto com anéis em todos os dedos.
Um senhor fumando um cachimbo entra no café.
Um 96.
Uma mulher correndo.
Um homem tossindo muito.
Um 86.
Tenho a sensação que minha mão direita congela. Estou com frio.
Pausa na escrita. Tenho vontade de pensar em outra coisa. Pego meu telemóvel.
Passa um 70.
Três homens saem de dentro do café. Um deles tropeça e quase cai.
Uma senhora, com um guarda-chuva muito colorido, entra no café.
Um homem com duas crianças. A menina que sentada em seus ombros tem parte do cabelo verde.
Uma mulher com um cigarro eletrônico branco.
São 15:15.
Venta muito, de novo. Sem sol.
Três pombas voando baixo.
Um homem ao telemóvel, fala bem alto enquanto passa na minha frente: oh, shit.
Uma mulher vestindo apenas peças de roupas da cor roxa. Inclusive a mochila.
Uma mulher com botas vermelhas.
Não há volta de indivíduos já vistos. São todos inéditos.
Uma bicicleta da Uber Eats.
O 70.
São 15:22.
PROCEDIMENTO
Inventário (homenagem a “Tentative d'épuisement d'un lieu parisien” de Georges Perec)