ROBÔS ARTISTAS
Inês Aparício
À entrada da cidade, uma placa diz: Aqui são criadas as saudades do futuro.
Enquanto conduzo, a rádio reproduz o som das massas: que nunca mais nos condicione a História. Rio-me. A História está morta e poucas são as provas de que alguma vez existiu. A História já só existe como palavra. Palavra para ser odiada. Recordar e, sobretudo, pensar não são coisas desta época. O futuro é deles, dos robôs que elaboram os novos tempos. Vejo agora como os sinais eram claros. Não nos falaram durante tanto tempo em cores de produtividade, desenhos de investimento e edificação de riqueza? Não nos transformaram em números e colocaram as máquinas ao nosso serviço? Não foram as pessoas substituídas por ecrãs?
Mas tudo está ainda no princípio. A multiplicação só agora começou, declara o criador destes novos homens. Adubando de futuro os territórios que eram memória, os robôs entrecruzam antigos e novos dispositivo de alarme social. Apoiam-se em estatísticas. A desta manhã afirma: a maioria dos acidentes sofridos são por pessoas. Já não consigo ouvir nem mais uma estatística. Não sinto nada há tanto tempo. Dizem que isso agora é o normal, que temos o que tantas vezes rogamos a cada comprimido: o não sentir. Os homens foram esvaziados. Já não existem dias com demência e nem teleassistência. Os valores éticos e morais desmoronaram. O protocolo de séculos, as solidariedades e as comunidades acabaram. Lembro-me do tempo em que existiam os artistas, os poemas e as músicas e do que isto me fazia sentir. Lembro-me de sentir e tenho saudades.
Agora, cada cidade é habitada por robôs especializados. Aquela em que entro é a dos robôs artistas. Já percorri todas as cidades, esta é a última. A minha última tentativa. Percorro as ruas, cada uma com a sua especialidade. Entro na rua dos poetas. Um robô aborda-me e pergunta-me: quer um poema? Respondo que sim. Que quero um poema para sentir, que tenho saudades de sentir. O robô responde-me: Só existem saudades do futuro. Sentir já não existe. Só existem poemas sobre o futuro e como ampliá-lo. Quer um poema? Quer um futuro?
Recuso o poema e o futuro. Saio desta cidade a transbordar de saudades do passado, dos tempos em que eu era puto e dava cabo das fomes sem necessitar de inventar. Diria, como se estivesse humano. Aciono o INEM, peço interajuda. Não existem mais cidades para mim.
PROCEDIMENTO
Cut-Up
FONTE
Revista Montepio, nº 18 e 19.
Inês Aparício
À entrada da cidade, uma placa diz: Aqui são criadas as saudades do futuro.
Enquanto conduzo, a rádio reproduz o som das massas: que nunca mais nos condicione a História. Rio-me. A História está morta e poucas são as provas de que alguma vez existiu. A História já só existe como palavra. Palavra para ser odiada. Recordar e, sobretudo, pensar não são coisas desta época. O futuro é deles, dos robôs que elaboram os novos tempos. Vejo agora como os sinais eram claros. Não nos falaram durante tanto tempo em cores de produtividade, desenhos de investimento e edificação de riqueza? Não nos transformaram em números e colocaram as máquinas ao nosso serviço? Não foram as pessoas substituídas por ecrãs?
Mas tudo está ainda no princípio. A multiplicação só agora começou, declara o criador destes novos homens. Adubando de futuro os territórios que eram memória, os robôs entrecruzam antigos e novos dispositivo de alarme social. Apoiam-se em estatísticas. A desta manhã afirma: a maioria dos acidentes sofridos são por pessoas. Já não consigo ouvir nem mais uma estatística. Não sinto nada há tanto tempo. Dizem que isso agora é o normal, que temos o que tantas vezes rogamos a cada comprimido: o não sentir. Os homens foram esvaziados. Já não existem dias com demência e nem teleassistência. Os valores éticos e morais desmoronaram. O protocolo de séculos, as solidariedades e as comunidades acabaram. Lembro-me do tempo em que existiam os artistas, os poemas e as músicas e do que isto me fazia sentir. Lembro-me de sentir e tenho saudades.
Agora, cada cidade é habitada por robôs especializados. Aquela em que entro é a dos robôs artistas. Já percorri todas as cidades, esta é a última. A minha última tentativa. Percorro as ruas, cada uma com a sua especialidade. Entro na rua dos poetas. Um robô aborda-me e pergunta-me: quer um poema? Respondo que sim. Que quero um poema para sentir, que tenho saudades de sentir. O robô responde-me: Só existem saudades do futuro. Sentir já não existe. Só existem poemas sobre o futuro e como ampliá-lo. Quer um poema? Quer um futuro?
Recuso o poema e o futuro. Saio desta cidade a transbordar de saudades do passado, dos tempos em que eu era puto e dava cabo das fomes sem necessitar de inventar. Diria, como se estivesse humano. Aciono o INEM, peço interajuda. Não existem mais cidades para mim.
PROCEDIMENTO
Cut-Up
FONTE
Revista Montepio, nº 18 e 19.