LOOKING THROUGH YOUR SOUL: O QUE ACONTECE DENTRO DO METRO
Catarina Novais
DIA 1
Abrem-se as portas do metro amarelo com destino a ISMAI. Abandono a Trindade e sento-me no local de sempre. Lugar da janela, dois bancos. A minha mochila ocupa um deles – não quero ninguém ao meu lado. Olho em frente: vejo dois amigos. Mantenho o olhar pousado neles – primeiras cobaias desta experiência. Os rapazes, que devem ter entre quinze a dezassete anos, não reparam em mim. Ao fim de alguns minutos, e já depois de termos passado a Casa de Música, o rapaz que tem um casaco preto levanta o olhar e vê-me. Fica atrapalhado e rapidamente desvia o olhar. Não evita, no entanto, a curiosidade e volta a olhar-me de relance. Novamente se atrapalha e olha para o telemóvel. Ele e o amigo levantam-se e saem na paragem seguinte. Fim da primeira experiência.
Ainda me faltam algumas paragens até ao meu destino. Opto por escolher mais uma cobaia. Desta vez, escolho uma senhora que aparenta ter cerca de sessenta anos. Está sozinha, vestida de amarelo – parece implorar que olhem para ela. Foco-me na sua cara e demora apenas alguns segundos até retribuir o olhar. Tem a máscara colocada, mas reparo que sorri para mim (ou então simplesmente mexeu o nariz e provocou alguma alteração nas suas feições, o que levou a máscara azul a movimentar-se). Desvia o olhar e passado alguns segundos volta a deixar os seus olhos pousados sobre mim. E assim ficamos durante algum tempo, até que a abandono o metro, saindo na Senhora da Hora. Ao passar por ela lanço um breve “boa tarde”. Obtenho resposta do outro lado. Fim da segunda experiência.
DIA 2
São 9h da manhã. Vejo as pessoas em modo zombie. Não chove, mas a probabilidade de precipitação é alta. Entro no metro e sinto-me uma salsicha dentro de uma lata de conservas. Agarro-me ao ferro amarelo no meio do metro e escolho a minha primeira cobaia do dia. Durante a viagem até à Trindade, no metro com destino ao Estádio do Dragão, tenho várias opções. Escolho o senhor de gabardina bege. Agarra a sua pasta preta, enquanto ouve música nos seus airpods brancos. Aparenta ter sono, porém, tenta disfarçar. Ajeita a gravata azul que condiz com o seu fato cinzento. Olho para ele durante toda a viagem, contudo, acredito que está a dormir em pé e não olha para nenhum local que não seja o acinzentado chão do metro. Ambos saímos na estação da Trindade. Fim da terceira experiência.
Desço as escadas até à plataforma com destino a Santo Ovídio. Espero alguns minutos pelo metro e entro. Ao meu lado entra um rapaz alto, negro e com um cabelo que rapidamente me relembra a personagem principal da curta metragem animada Hair Love. Veste uma camisa branca, calças pretas e sapatilhas da cor da neve. A sua roupa está completa com um trench coat também preto. Tal como eu, opta por não se sentar. Ficamos frente a frente. Rapidamente olho-o. E ele, concentrado no mundo dentro do seu telemóvel, não repara que existo. Por breves segundos, levanta a cabeça e vê-me. Calmamente baixa o olhar e ignora a minha fixação por completo. Ele continua o caminho e eu abandono o metro no Jardim do Morro. Fim da quarta experiência.
São quase 18h. Estou cansada e apressada para ir para casa – tal como as vinte mil pessoas à minha volta. Entro no primeiro metro que para na estação sem ver qual é o seu destino. Penso “todos param na Senhora da Hora”. Assim que coloco os meus pés dentro do metro absolutamente lotado de pessoas exaustas, ouço uma senhora a falar alto. Está numa chamada com alguém e, ao mesmo tempo, com todos os passageiros do metro. Fala sobre a Páscoa. Não comprou cabrito, pois admite que este ano não quer ter trabalho e que o pequeno animal está caro. Mas, atenção, das amêndoas não se esqueceu! No momento em que ouvi a sua voz e me apercebi que estava perto de mim, decidi que seria a minha nova cobaia. Soube rapidamente que poderia não ser uma aposta segura. Fixei o olhar na senhora que devia ter entre quarenta a cinquenta anos. Ao fim de apenas uma paragem, percebeu que eu olhava para ela. Devolveu-me o olhar e não pareceu satisfeita. Tinha a máscara no queixo (porque, claro, a COVID é uma invenção da indústria e nunca existiu) e eu podia sentir vírus saírem furiosamente da sua boca. Contei os segundos na minha cabeça, pois já antecipava uma interrogação. E ela chegou, ao fim de exatamente quarenta e oito segundos, depois de também ela fixar o seu olhar em mim. Gritou, alta e fortemente, para que também todo o metro ouvisse. “Olha, espera aí que está aqui uma gaja a olhar para mim”. Essa “gaja” seria obviamente eu e admito que me agradou o facto de a senhora ter percebido que eu me tratava de uma rapariga. Desde que, há alguns meses, tive a radical ideia de cortar mais de metade do meu cabelo, temi que algumas pessoas me pudessem confundir com um rapaz sempre que eu usasse máscara, independentemente das cores comumente apelidadas de femininas que eu ostento. A senhora em questão, após proferir tais palavras, dirigiu as seguintes a mim, vociferando “Queres alguma coisa? Uma fotografia?”. Mais de dez pessoas olharam para mim, aguardando algum tipo de manifestação. Eu, calmamente no exterior, e um pouco em pânico no interior, respondi “Quero, quero que coloque a máscara”. Escusado seria explicar que a senhora não ficou agradada com a resposta e que resmungou um pouco algumas palavras que foram inaudíveis para mim, mas que acredito que não terão sido simpáticas. A verdade é que colocou a máscara, diante da minha continua fixação, e acabou por sair uns segundos depois, na paragem de Ramalde. Fim da quinta experiência.
Nas paragens que me restaram, resolvi pousar o olhar numa das senhoras que criticou a senhora sem máscara assim que ela saiu. Na verdade, a nova cobaia é que me escolheu, pois foi ela quem pousou primeiro o olhar em mim. Disse-me “a menina tem toda a razão” e conversamos um pouco sobre a COVID (que afinal existe) até que eu saí na Senhora da Hora. Fim da sexta experiência.
DIA 3
No terceiro dia da minha exaustiva jornada de olhares, apenas me dirigi da paragem do Jardim do Morro até à da Trindade. Foram exatamente três paragens. Eram 15h e o metro ia praticamente vazio. Sentei-me em frente a uma família de turistas, que pareciam muito focados no mapa que tinham nas mãos (e eu senti-me um pouco corroída por dentro, porque sou fã do Google Maps). Os pais não olharam para mim uma única vez, até que o filho mais novo, Shaun, loiro e com cerca de seis anos, falou para mim. Disse “Hi”, sorriu e continuou a correr pelo metro. Os pais, e as irmãs, igualmente loiras, olharam para mim e sorriram através das suas máscaras. Aproveitaram e pediram-me indicações sobre a melhor forma de chegar à Casa da Música. Ajudei-os e quase perdi a minha saída. Fim da sétima experiência.
DIA 4
Quinta-feira. 08h50. Entro no metro com destino a Campanhã. Novamente lotado, algo típico nos metros das manhãs. Encosto-me a uma parece, mesmo ao lado da porta do metro. A minha cobaia está no lado oposto. Três raparigas, têm livros de Português do 11º ano. São amigas e parecem ter combinado o outfit na noite anterior. Calças de ganga iguais e repletas de furos, blusas verdes (diferentes, porém do mesmo tom) e sapatilhas Stan Smith (pensei que já tivéssemos ultrapassado esta moda, mas parece que veio para ficar como se fosse uma pandemia de Air Force One). O cabelo está solto e estão perfeitamente maquilhadas (adorava ter tamanha paciência e dedicação pela manhã, admito que invejo essas qualidades). Estão a conversar sobre algo, porém, a minha distância não me permite percebe qual é o tema. Riem-se. A rapariga do meio, a mais baixa das três, tosse e eu penso “já foram”. Continuo a mirá-las e nenhuma repara. Começo a pensar se serei invisível. O nariz delas fareja COVID, talvez seja por isso que está de fora da máscara cirúrgica. Paramos na estação Carolina Michaëlis e elas saem. Ao sair, uma delas, olha para mim rapidamente e comenta algo com as amigas. Olham, por fim, para mim, já de fora do metro, enquanto retiram as máscaras que foram mal utilizadas. Fim da oitava experiência.
Corro para a plataforma no piso inferior e um rapaz segura a porta do metro para que eu entre. Passo por ele e agradeço, decidindo nesse momento que será a minha nova cobaia. Fico ao seu lado, a menos de dois metros, e rodo um pouco o meu pescoço, pousando os olhos na cara dele e somando pontos para a criação de um torcicolo. Ele repara em mim – finalmente alguém com uma visão periférica funcional. Olha para mim com alguma intriga e continua a olhar. Olha para cima e para baixo e para cima e para baixo. Retira os headphones pretos e questiona “Disseste alguma coisa?”. Eu, totalmente envergonhada, respondo que não e continuo a parecer uma anormal e a olhar para ele. O rapaz, que devia ter a minha idade, não parece incomodado. Até eu sair, não coloca novamente os headphones e olha para mim também. Foi, sem dúvida, um momento insólito. Para minha sorte, acabou em alguns minutos, assim que saí no Jardim do Morro e lhe disse “tchau”. Fim da décima experiência.
Como o dia já tinha sido estranho, no regresso a casa, por volta das 17h, na Trindade, escolhi olhar para alguém que pensei que não fosse olhar para mim. Mas nem sempre as coisas acontecem como queremos. Comecei a minha experiência a olhar para um rapaz que estava embebido no seu jogo no telemóvel. Acreditei que ele não iria olhar para mim, mas afinal eu não sou invisível. Assim que se apercebeu que estava a olhar para ele, devolveu-me o gesto e fez exatamente o mesmo até eu sair do metro, na Senhora da Hora. Foi uma viagem longa e constrangedora. O rapaz tinha um ar curioso e relembrava-me a personagem de Daniel Day-Lewis, no filme My left Foot. Senti, por momentos, que estávamos a fazer um jogo do sério não planeado e, pela primeira vez na história da minha existência, não perdi nos primeiros vinte segundos. Para minha sorte, pouco depois de passarmos a paragem de Francos ele recebeu uma chamada (ou inventou uma, honestamente, não fiquei importada) e parou de olhar para mim, trocando o seu foco para o exterior. Alterou a postura e observou a paisagem pela janela, ficando com um olhar totalmente vazio. Saí na Senhora da Hora e, ainda ao telemóvel, olhou para mim uma última vez, através do vidro. Fim da décima primeira experiência.
DIA 5
Sexta-feira. Último dia da semana. Estamos todos cansados e ansiamos pelo sábado. Relembro-me da música do Dubskie e canto interiormente “It's Friday then. Then Saturday, Sunday, what?” numa falhada tentativa de mandar o sono que me acerca embora. Foco-me no álbum “Liked Songs”, no Spotify, e ao som de Selah Sue, Barbara Pravi, Elton John, Novo Amor, Cigarettes After Sex, Aquilo, Ludovico Einaudi, Daughter, The Script e também Goo Goo Dolls, faço a minha viagem de pouco mais de meia hora. Quando começa a música Breath Me, da SIA, inicia-se também o meu exercício diário. Escolho um pai e uma filha. Olho para eles e esqueço-me o motivo pelo qual os observo. O sono é maior do que o meu 1 metro e 69 centímetros e pareço apenas concentrar-me na letra da música. Foi um daqueles momentos em que estamos, mas não estamos. Olho para eles e gostava que o meu olhar fosse gravado, pois certamente transmitiria apenas um olhar vazio. Honestamente não reparo se as minhas cobaias olham para mim. De qualquer forma, acredito que não, os dois estavam concentrados no trabalho de casa que a filha se esqueceu de fazer. Fim da décima segunda experiência.
Arrasto os meus pés até ao próximo metro da manhã e opto por não correr para chegar atempadamente. Espero três minutos pelo próximo. Quando chega, já estou mais desperta, graças às notas de Iris. Até à estação do Jardim do Morro, ouvindo a minha extensa playlist, foco o meu olhar numa velha conhecida e antiga amiga. Ela não repara em mim – se repara, finge que não me conhece. E, pela primeira vez nesta experiência, quis ser notada. Ela fez a viagem toda a ver uma série no telemóvel e eu percebo uma coisa: «mudam-se os tempos», mas nem sempre se mudam as vontades. Fim da décima terceira experiência.
Terceiro metro do dia. Regresso a casa. Destino Senhora da Hora. Sinto saudades do meu carro abandonado no estacionamento da Senhora da Hora. São quase 17h30. Entro no metro em direção a Póvoa de Varzim. Desta vez, escolho quatro cobaias e vou alternando o olhar entre elas. O metro está cheio de pessoas e as opções são diversas. É quase como uma loja dos chineses: há de tudo. Escolho um senhor, ou o mais correto será dizer que ele me escolhe a mim. Tem olhos azuis e está desconfortável. Mexe-me muito, toca repetidamente nas suas mãos e olha muito para a senhora ao seu lado. Mostra o seu desconforto apertando duas vezes o casaco e olhando para a sua camisola no interior do casaco. Olha para mim fixamente cerca de quatro vezes e, eu, ao compreender que ele está desconfortável e não querendo aumentar o seu desconforto, opto por continuar a mirá-lo, porém disfarçadamente. O metro para na Casa da Música e ele sai. Já na estação o seu desconforto mantém-se evidente, tendo parado e olhado repetidamente para ambas as saídas, parecendo não saber qual escolher. Acabou por pousar o seu saco e mochila no chão e o metro arranca. Fim da décima quarta experiência.
Por isso, como ainda não havia chegado ao meu destino, escolho outra cobaia: a senhora ao lado da minha antiga cobaia. Essa senhora aparenta ter sessenta anos, tem um guarda chuva e uma gabardina bege. Chama uma colega para sentar-se ao seu lado e passam a viagem a conversar sobre ajustes de calças, gostos e de consultas médicas. A certa altura a senhora apercebe-se que olho para ela e olha de volta cerca de duas ou três vezes, mas não está minimamente importada, tendo continuado a sua conversa. O metro parou na estação Sete Bicas, e aí compreendo que vai a uma consulta para ser internada no Instituto CUF e percebo também que ela tem dificuldade de mobilidade, pelo que a amiga tem de ajudá-la a levantar-se. Eu também devia ter saído na mesma estação da minha cobaia, porém, estou tão concentrada a observar que me esqueço e, quando me apercebo, o metro já está a andar. Fim da décima quinta experiência.
Nos segundos que se seguem escolho uma senhora que se levanta e dirige para a porta, colocando-se de perfil para mim e não reparando na minha observação. Fim da décima sexta experiência.
Saiu na estação seguinte e apanho o metro do sentido contrário e, nessa pequena viagem de cerca de 30 ou 40 segundos, opto por continuar a minha experiência. A nova cobaia é uma senhora que está junto à porta e quase a adormecer, fechando diversas vezes os olhos. Eu estou encostada à porta, porque o metro está lotado, então permaneço no meio de dois homens, a menos de meio metro de cada um. Olho para a cobaia e ela olha-me lentamente, voltando a adormecer novamente. Portanto, altero a minha cobaia, visualizando a esquerda e escolhendo um senhor vestido de escuro e de olhos azuis. Escusado será dizer que ele ia atento a observar a paisagem e não reparou em mim. Altero novamente a cobaia pelos segundos que me restam e esses são os dez segundos mais longos da minha vida. Como a nova cobaia está a menos de meio metro de mim, ao meu lado, e eu olho para ele, a cobaia fica visivelmente desconfortável. Eu compreendo esse desconforto e tento disfarçar. Ele, por sua vez, olha para mim, para confirmar se eu olho para ele. Curiosamente foi a pessoa que mais desconfortável ficou nesta experiência, possivelmente devido à grande proximidade. Além disso, foi também visível o alívio do senhor quando percebeu que eu ia abandonar o metro. Fim da décima sétima experiência.
DIA 6
Sábado e novamente no metro. Dia de jogo. Vou para o metro às 18h. Entro e está repleto de pessoas vestidas de azul e branco. Vou distraída na conversa e, por isso, quando chego à estação Estádio do Dragão, apercebo-me que não fiz contacto visual com ninguém. Fim da décima oitava experiência.
DIA 7
No último dia da minha experiência, não andei de metro. Porém, optei por querer continuá-la de uma forma diferente. Escolhi um pequeno exercício que fazia quando era pequena. No lugar do passageiro, abri a janela e disse “bom dia” a todas as pessoas por quem passava. Ao contrário do que fazia quando era pequena, evitei saudar aqueles que apareciam perto de semáforos, pois podia ter o azar de parar e, dessa forma, evitei (MAIS) constrangimentos (o que não fiz enquanto criança). O balanço final foi positivo e posso afirmar que, na sua esmagadora maioria, os portuenses são um povo simpático e bem-educado. Os turistas também foram, porém acredito que ficaram com a impressão de que nós temos alguns fusíveis em falta. De qualquer forma, e apenas por curiosidade, as pessoas de idade mais avançada são as que mais respondem de volta, sendo que as senhoras sorriram sempre e nunca me deixaram sem resposta. Os mais jovens, também respondem, mas nem sempre com uma resposta cortês. Fica a dica, caso também te queiras aventurar.
PROCEDIMENTO
Todos os dias percorro as diversas linhas do Metro do Porto e deparo-me com pessoas diferentes, de olhares indiferentes e intrigantes. Assim, numa tentativa de tentar fazer um pouco parte das suas viagens (e colocando-me numa situação ligeiramente inusitada), decidi que durante uma semana, e em todas as minhas viagens, iria escolher pessoas e observá-las fixamente até que reparassem em mim. O método foi curioso, o conteúdo e a sua realização foram, no mínimo, engraçadas e constrangedoras, e o resultado final foi satisfatoriamente interessante.
Catarina Novais
DIA 1
Abrem-se as portas do metro amarelo com destino a ISMAI. Abandono a Trindade e sento-me no local de sempre. Lugar da janela, dois bancos. A minha mochila ocupa um deles – não quero ninguém ao meu lado. Olho em frente: vejo dois amigos. Mantenho o olhar pousado neles – primeiras cobaias desta experiência. Os rapazes, que devem ter entre quinze a dezassete anos, não reparam em mim. Ao fim de alguns minutos, e já depois de termos passado a Casa de Música, o rapaz que tem um casaco preto levanta o olhar e vê-me. Fica atrapalhado e rapidamente desvia o olhar. Não evita, no entanto, a curiosidade e volta a olhar-me de relance. Novamente se atrapalha e olha para o telemóvel. Ele e o amigo levantam-se e saem na paragem seguinte. Fim da primeira experiência.
Ainda me faltam algumas paragens até ao meu destino. Opto por escolher mais uma cobaia. Desta vez, escolho uma senhora que aparenta ter cerca de sessenta anos. Está sozinha, vestida de amarelo – parece implorar que olhem para ela. Foco-me na sua cara e demora apenas alguns segundos até retribuir o olhar. Tem a máscara colocada, mas reparo que sorri para mim (ou então simplesmente mexeu o nariz e provocou alguma alteração nas suas feições, o que levou a máscara azul a movimentar-se). Desvia o olhar e passado alguns segundos volta a deixar os seus olhos pousados sobre mim. E assim ficamos durante algum tempo, até que a abandono o metro, saindo na Senhora da Hora. Ao passar por ela lanço um breve “boa tarde”. Obtenho resposta do outro lado. Fim da segunda experiência.
DIA 2
São 9h da manhã. Vejo as pessoas em modo zombie. Não chove, mas a probabilidade de precipitação é alta. Entro no metro e sinto-me uma salsicha dentro de uma lata de conservas. Agarro-me ao ferro amarelo no meio do metro e escolho a minha primeira cobaia do dia. Durante a viagem até à Trindade, no metro com destino ao Estádio do Dragão, tenho várias opções. Escolho o senhor de gabardina bege. Agarra a sua pasta preta, enquanto ouve música nos seus airpods brancos. Aparenta ter sono, porém, tenta disfarçar. Ajeita a gravata azul que condiz com o seu fato cinzento. Olho para ele durante toda a viagem, contudo, acredito que está a dormir em pé e não olha para nenhum local que não seja o acinzentado chão do metro. Ambos saímos na estação da Trindade. Fim da terceira experiência.
Desço as escadas até à plataforma com destino a Santo Ovídio. Espero alguns minutos pelo metro e entro. Ao meu lado entra um rapaz alto, negro e com um cabelo que rapidamente me relembra a personagem principal da curta metragem animada Hair Love. Veste uma camisa branca, calças pretas e sapatilhas da cor da neve. A sua roupa está completa com um trench coat também preto. Tal como eu, opta por não se sentar. Ficamos frente a frente. Rapidamente olho-o. E ele, concentrado no mundo dentro do seu telemóvel, não repara que existo. Por breves segundos, levanta a cabeça e vê-me. Calmamente baixa o olhar e ignora a minha fixação por completo. Ele continua o caminho e eu abandono o metro no Jardim do Morro. Fim da quarta experiência.
São quase 18h. Estou cansada e apressada para ir para casa – tal como as vinte mil pessoas à minha volta. Entro no primeiro metro que para na estação sem ver qual é o seu destino. Penso “todos param na Senhora da Hora”. Assim que coloco os meus pés dentro do metro absolutamente lotado de pessoas exaustas, ouço uma senhora a falar alto. Está numa chamada com alguém e, ao mesmo tempo, com todos os passageiros do metro. Fala sobre a Páscoa. Não comprou cabrito, pois admite que este ano não quer ter trabalho e que o pequeno animal está caro. Mas, atenção, das amêndoas não se esqueceu! No momento em que ouvi a sua voz e me apercebi que estava perto de mim, decidi que seria a minha nova cobaia. Soube rapidamente que poderia não ser uma aposta segura. Fixei o olhar na senhora que devia ter entre quarenta a cinquenta anos. Ao fim de apenas uma paragem, percebeu que eu olhava para ela. Devolveu-me o olhar e não pareceu satisfeita. Tinha a máscara no queixo (porque, claro, a COVID é uma invenção da indústria e nunca existiu) e eu podia sentir vírus saírem furiosamente da sua boca. Contei os segundos na minha cabeça, pois já antecipava uma interrogação. E ela chegou, ao fim de exatamente quarenta e oito segundos, depois de também ela fixar o seu olhar em mim. Gritou, alta e fortemente, para que também todo o metro ouvisse. “Olha, espera aí que está aqui uma gaja a olhar para mim”. Essa “gaja” seria obviamente eu e admito que me agradou o facto de a senhora ter percebido que eu me tratava de uma rapariga. Desde que, há alguns meses, tive a radical ideia de cortar mais de metade do meu cabelo, temi que algumas pessoas me pudessem confundir com um rapaz sempre que eu usasse máscara, independentemente das cores comumente apelidadas de femininas que eu ostento. A senhora em questão, após proferir tais palavras, dirigiu as seguintes a mim, vociferando “Queres alguma coisa? Uma fotografia?”. Mais de dez pessoas olharam para mim, aguardando algum tipo de manifestação. Eu, calmamente no exterior, e um pouco em pânico no interior, respondi “Quero, quero que coloque a máscara”. Escusado seria explicar que a senhora não ficou agradada com a resposta e que resmungou um pouco algumas palavras que foram inaudíveis para mim, mas que acredito que não terão sido simpáticas. A verdade é que colocou a máscara, diante da minha continua fixação, e acabou por sair uns segundos depois, na paragem de Ramalde. Fim da quinta experiência.
Nas paragens que me restaram, resolvi pousar o olhar numa das senhoras que criticou a senhora sem máscara assim que ela saiu. Na verdade, a nova cobaia é que me escolheu, pois foi ela quem pousou primeiro o olhar em mim. Disse-me “a menina tem toda a razão” e conversamos um pouco sobre a COVID (que afinal existe) até que eu saí na Senhora da Hora. Fim da sexta experiência.
DIA 3
No terceiro dia da minha exaustiva jornada de olhares, apenas me dirigi da paragem do Jardim do Morro até à da Trindade. Foram exatamente três paragens. Eram 15h e o metro ia praticamente vazio. Sentei-me em frente a uma família de turistas, que pareciam muito focados no mapa que tinham nas mãos (e eu senti-me um pouco corroída por dentro, porque sou fã do Google Maps). Os pais não olharam para mim uma única vez, até que o filho mais novo, Shaun, loiro e com cerca de seis anos, falou para mim. Disse “Hi”, sorriu e continuou a correr pelo metro. Os pais, e as irmãs, igualmente loiras, olharam para mim e sorriram através das suas máscaras. Aproveitaram e pediram-me indicações sobre a melhor forma de chegar à Casa da Música. Ajudei-os e quase perdi a minha saída. Fim da sétima experiência.
DIA 4
Quinta-feira. 08h50. Entro no metro com destino a Campanhã. Novamente lotado, algo típico nos metros das manhãs. Encosto-me a uma parece, mesmo ao lado da porta do metro. A minha cobaia está no lado oposto. Três raparigas, têm livros de Português do 11º ano. São amigas e parecem ter combinado o outfit na noite anterior. Calças de ganga iguais e repletas de furos, blusas verdes (diferentes, porém do mesmo tom) e sapatilhas Stan Smith (pensei que já tivéssemos ultrapassado esta moda, mas parece que veio para ficar como se fosse uma pandemia de Air Force One). O cabelo está solto e estão perfeitamente maquilhadas (adorava ter tamanha paciência e dedicação pela manhã, admito que invejo essas qualidades). Estão a conversar sobre algo, porém, a minha distância não me permite percebe qual é o tema. Riem-se. A rapariga do meio, a mais baixa das três, tosse e eu penso “já foram”. Continuo a mirá-las e nenhuma repara. Começo a pensar se serei invisível. O nariz delas fareja COVID, talvez seja por isso que está de fora da máscara cirúrgica. Paramos na estação Carolina Michaëlis e elas saem. Ao sair, uma delas, olha para mim rapidamente e comenta algo com as amigas. Olham, por fim, para mim, já de fora do metro, enquanto retiram as máscaras que foram mal utilizadas. Fim da oitava experiência.
Corro para a plataforma no piso inferior e um rapaz segura a porta do metro para que eu entre. Passo por ele e agradeço, decidindo nesse momento que será a minha nova cobaia. Fico ao seu lado, a menos de dois metros, e rodo um pouco o meu pescoço, pousando os olhos na cara dele e somando pontos para a criação de um torcicolo. Ele repara em mim – finalmente alguém com uma visão periférica funcional. Olha para mim com alguma intriga e continua a olhar. Olha para cima e para baixo e para cima e para baixo. Retira os headphones pretos e questiona “Disseste alguma coisa?”. Eu, totalmente envergonhada, respondo que não e continuo a parecer uma anormal e a olhar para ele. O rapaz, que devia ter a minha idade, não parece incomodado. Até eu sair, não coloca novamente os headphones e olha para mim também. Foi, sem dúvida, um momento insólito. Para minha sorte, acabou em alguns minutos, assim que saí no Jardim do Morro e lhe disse “tchau”. Fim da décima experiência.
Como o dia já tinha sido estranho, no regresso a casa, por volta das 17h, na Trindade, escolhi olhar para alguém que pensei que não fosse olhar para mim. Mas nem sempre as coisas acontecem como queremos. Comecei a minha experiência a olhar para um rapaz que estava embebido no seu jogo no telemóvel. Acreditei que ele não iria olhar para mim, mas afinal eu não sou invisível. Assim que se apercebeu que estava a olhar para ele, devolveu-me o gesto e fez exatamente o mesmo até eu sair do metro, na Senhora da Hora. Foi uma viagem longa e constrangedora. O rapaz tinha um ar curioso e relembrava-me a personagem de Daniel Day-Lewis, no filme My left Foot. Senti, por momentos, que estávamos a fazer um jogo do sério não planeado e, pela primeira vez na história da minha existência, não perdi nos primeiros vinte segundos. Para minha sorte, pouco depois de passarmos a paragem de Francos ele recebeu uma chamada (ou inventou uma, honestamente, não fiquei importada) e parou de olhar para mim, trocando o seu foco para o exterior. Alterou a postura e observou a paisagem pela janela, ficando com um olhar totalmente vazio. Saí na Senhora da Hora e, ainda ao telemóvel, olhou para mim uma última vez, através do vidro. Fim da décima primeira experiência.
DIA 5
Sexta-feira. Último dia da semana. Estamos todos cansados e ansiamos pelo sábado. Relembro-me da música do Dubskie e canto interiormente “It's Friday then. Then Saturday, Sunday, what?” numa falhada tentativa de mandar o sono que me acerca embora. Foco-me no álbum “Liked Songs”, no Spotify, e ao som de Selah Sue, Barbara Pravi, Elton John, Novo Amor, Cigarettes After Sex, Aquilo, Ludovico Einaudi, Daughter, The Script e também Goo Goo Dolls, faço a minha viagem de pouco mais de meia hora. Quando começa a música Breath Me, da SIA, inicia-se também o meu exercício diário. Escolho um pai e uma filha. Olho para eles e esqueço-me o motivo pelo qual os observo. O sono é maior do que o meu 1 metro e 69 centímetros e pareço apenas concentrar-me na letra da música. Foi um daqueles momentos em que estamos, mas não estamos. Olho para eles e gostava que o meu olhar fosse gravado, pois certamente transmitiria apenas um olhar vazio. Honestamente não reparo se as minhas cobaias olham para mim. De qualquer forma, acredito que não, os dois estavam concentrados no trabalho de casa que a filha se esqueceu de fazer. Fim da décima segunda experiência.
Arrasto os meus pés até ao próximo metro da manhã e opto por não correr para chegar atempadamente. Espero três minutos pelo próximo. Quando chega, já estou mais desperta, graças às notas de Iris. Até à estação do Jardim do Morro, ouvindo a minha extensa playlist, foco o meu olhar numa velha conhecida e antiga amiga. Ela não repara em mim – se repara, finge que não me conhece. E, pela primeira vez nesta experiência, quis ser notada. Ela fez a viagem toda a ver uma série no telemóvel e eu percebo uma coisa: «mudam-se os tempos», mas nem sempre se mudam as vontades. Fim da décima terceira experiência.
Terceiro metro do dia. Regresso a casa. Destino Senhora da Hora. Sinto saudades do meu carro abandonado no estacionamento da Senhora da Hora. São quase 17h30. Entro no metro em direção a Póvoa de Varzim. Desta vez, escolho quatro cobaias e vou alternando o olhar entre elas. O metro está cheio de pessoas e as opções são diversas. É quase como uma loja dos chineses: há de tudo. Escolho um senhor, ou o mais correto será dizer que ele me escolhe a mim. Tem olhos azuis e está desconfortável. Mexe-me muito, toca repetidamente nas suas mãos e olha muito para a senhora ao seu lado. Mostra o seu desconforto apertando duas vezes o casaco e olhando para a sua camisola no interior do casaco. Olha para mim fixamente cerca de quatro vezes e, eu, ao compreender que ele está desconfortável e não querendo aumentar o seu desconforto, opto por continuar a mirá-lo, porém disfarçadamente. O metro para na Casa da Música e ele sai. Já na estação o seu desconforto mantém-se evidente, tendo parado e olhado repetidamente para ambas as saídas, parecendo não saber qual escolher. Acabou por pousar o seu saco e mochila no chão e o metro arranca. Fim da décima quarta experiência.
Por isso, como ainda não havia chegado ao meu destino, escolho outra cobaia: a senhora ao lado da minha antiga cobaia. Essa senhora aparenta ter sessenta anos, tem um guarda chuva e uma gabardina bege. Chama uma colega para sentar-se ao seu lado e passam a viagem a conversar sobre ajustes de calças, gostos e de consultas médicas. A certa altura a senhora apercebe-se que olho para ela e olha de volta cerca de duas ou três vezes, mas não está minimamente importada, tendo continuado a sua conversa. O metro parou na estação Sete Bicas, e aí compreendo que vai a uma consulta para ser internada no Instituto CUF e percebo também que ela tem dificuldade de mobilidade, pelo que a amiga tem de ajudá-la a levantar-se. Eu também devia ter saído na mesma estação da minha cobaia, porém, estou tão concentrada a observar que me esqueço e, quando me apercebo, o metro já está a andar. Fim da décima quinta experiência.
Nos segundos que se seguem escolho uma senhora que se levanta e dirige para a porta, colocando-se de perfil para mim e não reparando na minha observação. Fim da décima sexta experiência.
Saiu na estação seguinte e apanho o metro do sentido contrário e, nessa pequena viagem de cerca de 30 ou 40 segundos, opto por continuar a minha experiência. A nova cobaia é uma senhora que está junto à porta e quase a adormecer, fechando diversas vezes os olhos. Eu estou encostada à porta, porque o metro está lotado, então permaneço no meio de dois homens, a menos de meio metro de cada um. Olho para a cobaia e ela olha-me lentamente, voltando a adormecer novamente. Portanto, altero a minha cobaia, visualizando a esquerda e escolhendo um senhor vestido de escuro e de olhos azuis. Escusado será dizer que ele ia atento a observar a paisagem e não reparou em mim. Altero novamente a cobaia pelos segundos que me restam e esses são os dez segundos mais longos da minha vida. Como a nova cobaia está a menos de meio metro de mim, ao meu lado, e eu olho para ele, a cobaia fica visivelmente desconfortável. Eu compreendo esse desconforto e tento disfarçar. Ele, por sua vez, olha para mim, para confirmar se eu olho para ele. Curiosamente foi a pessoa que mais desconfortável ficou nesta experiência, possivelmente devido à grande proximidade. Além disso, foi também visível o alívio do senhor quando percebeu que eu ia abandonar o metro. Fim da décima sétima experiência.
DIA 6
Sábado e novamente no metro. Dia de jogo. Vou para o metro às 18h. Entro e está repleto de pessoas vestidas de azul e branco. Vou distraída na conversa e, por isso, quando chego à estação Estádio do Dragão, apercebo-me que não fiz contacto visual com ninguém. Fim da décima oitava experiência.
DIA 7
No último dia da minha experiência, não andei de metro. Porém, optei por querer continuá-la de uma forma diferente. Escolhi um pequeno exercício que fazia quando era pequena. No lugar do passageiro, abri a janela e disse “bom dia” a todas as pessoas por quem passava. Ao contrário do que fazia quando era pequena, evitei saudar aqueles que apareciam perto de semáforos, pois podia ter o azar de parar e, dessa forma, evitei (MAIS) constrangimentos (o que não fiz enquanto criança). O balanço final foi positivo e posso afirmar que, na sua esmagadora maioria, os portuenses são um povo simpático e bem-educado. Os turistas também foram, porém acredito que ficaram com a impressão de que nós temos alguns fusíveis em falta. De qualquer forma, e apenas por curiosidade, as pessoas de idade mais avançada são as que mais respondem de volta, sendo que as senhoras sorriram sempre e nunca me deixaram sem resposta. Os mais jovens, também respondem, mas nem sempre com uma resposta cortês. Fica a dica, caso também te queiras aventurar.
PROCEDIMENTO
Todos os dias percorro as diversas linhas do Metro do Porto e deparo-me com pessoas diferentes, de olhares indiferentes e intrigantes. Assim, numa tentativa de tentar fazer um pouco parte das suas viagens (e colocando-me numa situação ligeiramente inusitada), decidi que durante uma semana, e em todas as minhas viagens, iria escolher pessoas e observá-las fixamente até que reparassem em mim. O método foi curioso, o conteúdo e a sua realização foram, no mínimo, engraçadas e constrangedoras, e o resultado final foi satisfatoriamente interessante.