ETERNIDADE
Mário C. Brum
I
A minha obsessão com a eternidade é recente, mas urgentíssima. Tenho a sensação de que estou sempre a fazer o mesmo. Entre a ruína e hoje há uma diferença de 40 anos que leva tudo a repetir-se. Não tenho grandes complexos nem acredito no voluntarismo, porém nunca me adaptei a prazos. Intitulo-me pós-moderno e encontro-me numa fase de tudo experimentar. Sem preconceitos, gosto de estudar, de copiar, de viajar, de ver aquilo e aqueloutro. E há um material que gosto imenso: a pedra como tempo. Preocupa-me, porém, o que fazer ao buraco resultante de retirar pedra. Faz-me impressão.
II
Fui a uma pedreira na Feira Popular de Barcelona, no Vaticano, que tem calcário que se deteriora com o excesso de consciente. Falei com os operários e escolhi as pedras que mais gostava. Arranjei umas pedras verdes que tinham chegado na véspera. Aquilo estava seco e cru e pus-lhe umas cortinas e uns anjos. Até os burros gostaram. Pôr uns anjos para quê? Não sei dizer. Com o vinho, levo ao limite essa pergunta-resposta. Não me interessa nada. O arquitecto é apenas um coordenador. Não sou eu que tenho de pensar nisso. Disseram-me que estas pedras podiam levar à eternidade, a partir de quatro horas e até talvez 15 dias, na zona da transição entre o granito e a pré-existência. Fui ensaiando: com os braços levantados como num quadro de Kadinsky, dois muros, outra pedra em cima, dez blocos, fotografias de andorinhas, um poema...
III
Construí uma capela. É uma coisa de chorar de bonito, fragmentos e fragmentos, muros e pedras ao alto. Ruínas de ilhas. E os tais anjos. Coisas tão banais que encantam. Tudo começou com uma trombose, um tipo chama uma metáfora e depois tem derivações e cruzamentos. Do turbilhão, uma aceleração enorme e a pessoa vai-se distanciando. Está tremida. Não há nada mais estúpido do que um homem em frente à paisagem. Tudo é contraditório. Há um triângulo de ferro do século XIX com uma curva. Um buraco torna-se um teatro de arame em construção. A distância é equilíbrio, proporções. O truque é sempre o mesmo: pedir as medidas e, em função das pedras, construir-se e reconstruir-se de novo, respondendo ao contexto. É preciso saber muito classicismo para se poder decompor e recompor. Para ver como se redesenha, o homem supera-se então pela terceira via: ao adaptar-se a uma altura com pés-direitos de 2,5 metros, preserva a sua dimensão universal. Como diz Herberto Helder, ‘o espaço não existe, é uma metáfora do tempo.’
PROCEDIMENTO
Cut-Up
FONTE
Jornal Ipsilon, 11 de outubro de 2019 (Entrevista com Souto Moura).
Mário C. Brum
I
A minha obsessão com a eternidade é recente, mas urgentíssima. Tenho a sensação de que estou sempre a fazer o mesmo. Entre a ruína e hoje há uma diferença de 40 anos que leva tudo a repetir-se. Não tenho grandes complexos nem acredito no voluntarismo, porém nunca me adaptei a prazos. Intitulo-me pós-moderno e encontro-me numa fase de tudo experimentar. Sem preconceitos, gosto de estudar, de copiar, de viajar, de ver aquilo e aqueloutro. E há um material que gosto imenso: a pedra como tempo. Preocupa-me, porém, o que fazer ao buraco resultante de retirar pedra. Faz-me impressão.
II
Fui a uma pedreira na Feira Popular de Barcelona, no Vaticano, que tem calcário que se deteriora com o excesso de consciente. Falei com os operários e escolhi as pedras que mais gostava. Arranjei umas pedras verdes que tinham chegado na véspera. Aquilo estava seco e cru e pus-lhe umas cortinas e uns anjos. Até os burros gostaram. Pôr uns anjos para quê? Não sei dizer. Com o vinho, levo ao limite essa pergunta-resposta. Não me interessa nada. O arquitecto é apenas um coordenador. Não sou eu que tenho de pensar nisso. Disseram-me que estas pedras podiam levar à eternidade, a partir de quatro horas e até talvez 15 dias, na zona da transição entre o granito e a pré-existência. Fui ensaiando: com os braços levantados como num quadro de Kadinsky, dois muros, outra pedra em cima, dez blocos, fotografias de andorinhas, um poema...
III
Construí uma capela. É uma coisa de chorar de bonito, fragmentos e fragmentos, muros e pedras ao alto. Ruínas de ilhas. E os tais anjos. Coisas tão banais que encantam. Tudo começou com uma trombose, um tipo chama uma metáfora e depois tem derivações e cruzamentos. Do turbilhão, uma aceleração enorme e a pessoa vai-se distanciando. Está tremida. Não há nada mais estúpido do que um homem em frente à paisagem. Tudo é contraditório. Há um triângulo de ferro do século XIX com uma curva. Um buraco torna-se um teatro de arame em construção. A distância é equilíbrio, proporções. O truque é sempre o mesmo: pedir as medidas e, em função das pedras, construir-se e reconstruir-se de novo, respondendo ao contexto. É preciso saber muito classicismo para se poder decompor e recompor. Para ver como se redesenha, o homem supera-se então pela terceira via: ao adaptar-se a uma altura com pés-direitos de 2,5 metros, preserva a sua dimensão universal. Como diz Herberto Helder, ‘o espaço não existe, é uma metáfora do tempo.’
PROCEDIMENTO
Cut-Up
FONTE
Jornal Ipsilon, 11 de outubro de 2019 (Entrevista com Souto Moura).