COEXISTEM TEMPOS NO ROMANCE
Betina Ruiz
A tarde morria.
Dali a pouco, com o crepúsculo, ficaria difícil fazer pontaria.
Lentamente a mira do fuzil deslizou, ao longo da estrada, por restos de neve que não derretera.
O cano da arma se moveu de novo, no sentido inverso, das romãzeiras para os restos de neve.
O que ele chamava dia extraordinário já se reduzia àqueles restos de neve.
Mais um pouco, está escuro... queria que o crepúsculo caísse o quanto antes, trazendo a noite.
Apenas sentia hostilidade para com as romãzeiras e os restos de neve.
As romãzeiras silvestres e os restos de neve continuavam ali, à espreita.
Anoitecia.
E depois os loucos acontecimentos a que assistiram as romãs silvestres e a neve arrogante.
O som dos sinos vespertinos e todos os ruídos do anoitecer davam a impressão de arcar com o peso da recém-anunciada notícia da morte.
Agora, caminhava em meio aos acompanhantes do enterro, com os olhos tão frios como aquele dia de março.
Como um morcego, ele só se movimentaria nas trevas, fugindo do sol, da lua cheia e das tochas.
Lá fora corria março, meio risonho, meio gelado com aquela perigosa luminosidade alpina que só esse mês possuía.
Mais tarde viria Abril.
Abril desde já se revestia de uma dor azulada.
Sem tirar os olhos de seu fragmento de paisagem que se enevoara, Gjorg pensava.
Era branca e esvoaçava ao vento.
As estações, o calor e o frio, haveriam de influir nas mudanças da cor do sangue seco.
Sob a chuva miúda, sucediam-se quebradas sem nome, ou cujos nomes ele não conhecia, uma após outra, descarnadas e tristes.
Aqui e ali a água e os deslizamentos de terra tinham estreitado seu leito.
Estendia-se por toda parte, deslizava pelas terras, pelas bordas dos campos lavrados, penetrava nos alicerces das casas, nos túmulos, nas igrejas, ruas, feiras, festas de noivado, erguia-se até os cumes alpinos, talvez ainda mais alto, até o próprio céu, de onde caia em forma de chuva para encher os cursos de água que eram o motivo de um terço dos assassinatos.
Estavam todos encharcados, cansados; só os chocalhos das montarias tilintavam alegremente.
Os krushq, tal como ele, traziam as armas voltadas para baixo, a fim de protegê-las da chuva.
Continuava a chuviscar, mas as gotas haviam se espaçado, como se alguém tivesse podado as raízes das nuvens.
Agora estava completamente sozinho na estrada, num estreito descampado, repleto de leitos secos de antigas torrentes que por motivos misteriosos já não corriam, nem mesmo num dia de tanta chuva.
Quando Gjorg saiu, a chuva diminuíra ainda mais, porém o ar estava extremamente úmido.
Também era um dia extraordinário, um dia úmido, mas de uma umidade pobre, sem chuva, sem neblina sequer, para não falar de relâmpagos, que seriam um luxo inconcebível.
A chuva diminuía a tal ponto que parecia que iria parar, mas voltava a apertar em seguida.
No nevoeiro, seu perfil não parecia nem alto nem baixo, talvez extenso, quem sabe um bloco compacto.
Lá dentro, reinava a penumbra.
Era um fogo triste: a lenha, molhada, fazia mais fumaça que chama.
Sentiu o cheiro da lã úmida dos albornozes.
Alguém entrou, empurrando a porta, que rangeu.
Trazia nos braços um feixe de lenha e o atirou no fogo.
As achas estavam ainda mais molhadas que as outras, e a luz bruxuleante se apagou.
Ouvia-se a chuva caindo lá fora.
Esse inverno não quer acabar.
A madeira pingava água, indicando que lá fora a chuva continuava.
As achas úmidas, que o corcunda acabara de trazer, crepitavam no fogo.
Vez por outra, gotículas de chuva miúda pontilhavam o vidro da carruagem.
Lá fora, diante da carruagem, continuavam a se suceder longos descampados, ermos, cobertos por incontáveis pedregulhos de um tom fraco de café e molhados pela chuva mais trivial deste mundo.
Guarda-chuvas?, indagou Diana em voz baixa, quando a carruagem estava a cerca de cinquenta passos dos montanheses.
É o que parece, sussurrou ele.
De onde saíram esses guarda-chuvas?
Bessian Vorps voltou a cabeça, tentando se convencer de que as velharias nas mãos dos montanheses eram efetivamente guarda-chuvas esfarrapados, da empresa ítalo-albanesa Umbrella-Hijeza, com as varetas quebradas e o tecido rasgado.
Nunca vi um montanhês de guarda-chuva, bufou ele entre dentes.
Dir-se-ia que o Rrafsh ficava no céu, e não no norte da Albânia.
A igreja ficava num morro, quase um penhasco, e fosse porque a estrada passava muito embaixo fosse por causa do tom cinzento do céu, a cruz negra parecia se mover ameaçadoramente em meio às nuvens.
Era como se nunca houvessem existido montanheses que carregavam ridículos guarda-chuvas esfarrapados e prosaicos sacos de milho nas costas.
Agora podemos dizer que entramos verdadeiramente no reino da morte, disse Bessian.
Fora a chuva fina continuava a cair, como que misturada com neblina.
Diana teve a sensação de que, não fosse a chuva, o aspecto delas não seria tão triste.
Ela julgou ter visto um pássaro e quase gritou: Um pássaro!, como se ele fosse um sinal de apaziguamento do céu.
Um torvelinho de ar frio entrou na carruagem.
A carruagem rolava outra vez por uma estrada das montanhas.
O dia era cinzento, com um opressivo horizonte encerrado nas vastidões alpinas.
A fria luz do dia penetrava parcamente na carruagem, e como se isso não bastasse, o estofamento de veludo obscurecia ainda mais o ambiente.
De fato, fazia frio, e o resplendor dos Alpes em torno parecia acentuá-lo.
Ainda bem que não está chovendo, disse Bessian.
Chuva?, admirou-se ela
Quando você viu aqueles montanheses com guarda-chuvas esfarrapados, pensou que poderia rir do Rrafsh, não é?
Mais de uma vez, a chuva ameaçou cair, porém suas gotículas aparentemente se perdiam naquelas lonjuras imensas, sem alcançar a terra.
Poucas tinham atingido as janelas da carruagem e tremulavam sobre o vidro como pequenas lágrimas.
Fazia algum tempo que Diana observava a dança das gotas, que parecia perturbar o próprio vidro.
Que inverno longo, comentou Bessian.
Parece que não acaba.
E Diana já não conseguia distinguir se aquelas duas ou três lágrimas estavam no vidro ou em seus olhos.
Daqui a pouco vai escurecer.
O céu da tarde escurecia, imóvel e opressivo.
As nuvens davam a impressão de ter se petrificado para sempre lá no alto, e se havia algum movimento em torno delas tinha como palco não o céu, mas a terra.
Ali! Ali!, tinham exclamado não poucas vezes, quase a uma só voz, mas se enganavam. Eram apenas cristas com fiapos de nuvens presos a elas.
Os olhos do casal palmilhavam o horizonte em busca da kulle, e talvez, se ela despontasse bem alto no céu, entre as brechas das nuvens, isso lhes parecesse tão natural como se ela surgisse em meio aos morros de terra.
Ela sentiu a friagem percorrer todo o seu corpo.
Por trás daqueles vidros a noite parecia suspensa sobre um abismo.
Você está com frio?
Eu disse que se agasalhasse.
Está mesmo muito frio.
Você vai se resfriar.
E ali, na janela, com a fronte enregelada pelo frio do vidro, entendeu que estava disposta a muita coisa por aquele reencontro.
Assombrados, viram o colega, que escapou de uma tempestade mais que certa.
O aposento estava frio.
O mês de abril já estava começando, todavia no céu ainda era março.
Cravou os olhos lá fora, como se quisesse se penitenciar enfrentando aquela luz que, embora fria, também ofuscava
Caso o tempo piorasse, ele queria ver quanto cereal havia de ser colhido.
Ocorrera que o tempo tinha estado excelente, graças a Deus Todo-Poderoso, e o príncipe até elogiara o feitor das terras.
Ao passo que o sangue não era como a chuva, que cai do céu.
Ao passo que no ano em que estavam, a primavera começara mal.
Aos poucos, sua mente iria acumular outra porção de bruma cinzenta.
Era algo mais que bruma e algo menos que idéia, algo entre as duas coisas, turvo, amplo e incompleto.
Era uma estiagem peculiar que as atacava, com frequência em meio às chuvas de inverno.
A luminosidade matinal, ainda que um pouco mais intensa, conservava aquela frieza hostil das longínquas paragens de onde vinha.
Seu olhar se perdeu outra vez naquele céu acinzentado.
Sua mente se estafava pelas bordas das encostas, como se buscasse saber de onde vinha aquele traço indecifrável, ou, pior, aquela ponta de zombaria na luminosidade da manhã. Mais ainda quando sobrevinham lufadas de vento e as montanhas se destacavam.
Ele se punha a percorrer em pensamento todos os sentidos daquela imensidão fria que em seu cérebro se espraiava com uma estranha configuração, algo intermediário entre um mapa e a toalha posta na mesa para um almoço fúnebre.
Clãs inteiros aceitavam passar fome para escapar da vingança, assim como outros tantos faziam o contrário, adiando a vingança estação após estação.
Os restos de neve já derreteram.
Sabe-se lá por qual motivo, julgara que os restos de neve seriam os mais implacáveis para com ele.
Corriam os últimos dias de março.
Em breve começaria o mês de abril.
Com sua metade branca e a outra, negra.
Melhor continuar ali do que se ir pelo mundo como um lenhador miserável, pelas ruas chuvosas das cidades .
... Enquanto vivera encolhido em sua aldeia, pensara que o Rrafsh era imóvel, petrificado, sobretudo no inverno.
Tal como a gota d’água que tremula de leve sobre uma flor de pessegueiro e de súbito cai -, o dia quebrava e acabava.
Abril começara, mas mal se anunciava a primavera.
Os troncos ainda não estavam cobertos de brotos.
Só de quando em quando surgia uma faixa de claridade sobre os Alpes.
Já era tempo de chegar a primavera.
Em suas noites (que fragmentos de sonho tratavam de preencher desordenadamente, assim como raras estrelas tentam compor um sombrio céu de outono), aquele olhar.
A luz da lua sobre a copa de uma nogueira próxima lhe pareceu insuportável.
Lhe veio à mente, sem que pudesse dizer a razão, uma frase que ouvira anos antes, num dia encharcado de setembro.
era a carruagem do bispo da província vizinha, que viajava mesmo com tempo ruim
A raiva, seguida da discussão, tinha a capacidade de superar de golpe estados de apatia que pareciam sem saída, assim como uma tempestade dissolve um mormaço sufocante.
Anoitecia.
Pouco depois o luar banhou a estrada.
À luz da lua, a estrada parecia feita de vidro.
Dir-se-ia que o gélido clarão da lua o ajudava.
O luar clareou duas ou três vezes os joelhos dela.
O dia estava meio nublado, meio claro.
Havia, aqui e ali, numa extremidade ou na outra, um pouco de claridade.
A neve começava a se fundir.
De um e de outro lado se perfilavam as kulle de pedra, que pareciam ainda mais severas à luz do dia.
O sol desbotado que incidia obliquamente sobre as pedras das paredes as tornava ainda mais desoladas.
As linhas das janelas estreitas, os raios desbotados do sol, não revelavam nada.
Era um medo semelhante ao que experimentara uma noite de inverno em Tirana…
A tarde lançava uma luz suave sobre o descampado.
O ar dava a impressão de estar mais quente.
Os dias estão se alongando.
Em alguns pontos neve ainda não derretera, e o contraste com ela tornava ainda mais negros os trechos de terra.
Só trechos de terra negra, dramaticamente entremeados de restos de neve.
Sobre um espesso tapete cor de café formado por muitas camadas de folhas de estações passadas.
Agora os dias estão se alongando.
Sim, estamos em abril.
Lá fora, anoitecia.
O crepúsculo, auxiliado pela bruma, cobria tudo rapidamente.
Ele teve a impressão de ver por trás dos vidros da carruagem, em meio à névoa, um homem montado numa mula.
Embora caminhasse sem parar desde o nascer do sol, ele calculou que precisaria de mais um dia.
Ergueu a cabeça em busca do sol, que estava encoberto pelas nuvens mais altas.
Aos seus olhos, ainda ofuscados pela claridade, ela pareceu repleta de pequenos reflexos.
Naquele dia todas as suas preocupações estavam relacionadas com o céu e a marcha do sol através dele.
A estrada, que outra vez se apresentou repleta de luz ao seu olhar ofuscado.
Só via aquelas cintilações avermelhadas.
Muitas vezes ele pensara que afinal ela surgia, mas a cada vez ela desaparecera como se voasse para o céu.
Em lugar dela enxergaria apenas uma mancha confusa, tal como o sol atrás das nuvens naquele dia, parecendo um ramalhete de rosas esmagadas.
Pensou, e pela terceira vez ergueu o olhar para o céu.
Gjorg recordou os cabelos da bela mulher da cidade.
Se a luz do sol incidisse sobre a cachoeira, suas águas se assemelhariam a eles.
Ele ergueu os olhos para o céu.
Era como se as rosas esmagadas por trás das nuvens agora estivessem levemente mais encarnadas.
Os cumes das montanhas, esbranquiçados pela neve, recuavam sempre mais.
Gjorg ergueu a cabeça e deu com a mancha do sol atrás das nuvens.
Precisava encontrar um refúgio para encontrar o cair da noite.
Ele estava inteiramente só sob o céu.
Ele olhava em volta, frio.
Chegaria até a estrada sob bessa e por ali ficaria, até cair a noite.
Tinha o mesmo velho calçamento, estragado aqui e ali por muitos cascos e chuvas.
Aqui esperarei a noite.
De tempos em tempos Gjorg erguia os olhos para o céu.
O outro indicou o céu com um gesto.
Avistei-a ontem à noite, da Estalagem da Cruz.
Deixei-os lá à noite.
Ergueu a cabeça à procura dos rastros do sol nas nuvens.
Uma misteriosa bruma esbranquiçada caíra sobre elas.
Sentiam-se no ar as primeiras friagens do crepúsculo.
Enxergava alvos restos de neve que ainda não derretera.
PROCEDIMENTO
Recolha de frases do texto de origem com referências ao clima, reorganização dos parágrafos (uma frase por parágrafo) e remoção de marcas gráficas indicativas de diálogo.
FONTE
“Abril Despedaçado” – Ismal Kadaré (trad. Bernando Joffily, 2001, Companhia das Letras)
Betina Ruiz
A tarde morria.
Dali a pouco, com o crepúsculo, ficaria difícil fazer pontaria.
Lentamente a mira do fuzil deslizou, ao longo da estrada, por restos de neve que não derretera.
O cano da arma se moveu de novo, no sentido inverso, das romãzeiras para os restos de neve.
O que ele chamava dia extraordinário já se reduzia àqueles restos de neve.
Mais um pouco, está escuro... queria que o crepúsculo caísse o quanto antes, trazendo a noite.
Apenas sentia hostilidade para com as romãzeiras e os restos de neve.
As romãzeiras silvestres e os restos de neve continuavam ali, à espreita.
Anoitecia.
E depois os loucos acontecimentos a que assistiram as romãs silvestres e a neve arrogante.
O som dos sinos vespertinos e todos os ruídos do anoitecer davam a impressão de arcar com o peso da recém-anunciada notícia da morte.
Agora, caminhava em meio aos acompanhantes do enterro, com os olhos tão frios como aquele dia de março.
Como um morcego, ele só se movimentaria nas trevas, fugindo do sol, da lua cheia e das tochas.
Lá fora corria março, meio risonho, meio gelado com aquela perigosa luminosidade alpina que só esse mês possuía.
Mais tarde viria Abril.
Abril desde já se revestia de uma dor azulada.
Sem tirar os olhos de seu fragmento de paisagem que se enevoara, Gjorg pensava.
Era branca e esvoaçava ao vento.
As estações, o calor e o frio, haveriam de influir nas mudanças da cor do sangue seco.
Sob a chuva miúda, sucediam-se quebradas sem nome, ou cujos nomes ele não conhecia, uma após outra, descarnadas e tristes.
Aqui e ali a água e os deslizamentos de terra tinham estreitado seu leito.
Estendia-se por toda parte, deslizava pelas terras, pelas bordas dos campos lavrados, penetrava nos alicerces das casas, nos túmulos, nas igrejas, ruas, feiras, festas de noivado, erguia-se até os cumes alpinos, talvez ainda mais alto, até o próprio céu, de onde caia em forma de chuva para encher os cursos de água que eram o motivo de um terço dos assassinatos.
Estavam todos encharcados, cansados; só os chocalhos das montarias tilintavam alegremente.
Os krushq, tal como ele, traziam as armas voltadas para baixo, a fim de protegê-las da chuva.
Continuava a chuviscar, mas as gotas haviam se espaçado, como se alguém tivesse podado as raízes das nuvens.
Agora estava completamente sozinho na estrada, num estreito descampado, repleto de leitos secos de antigas torrentes que por motivos misteriosos já não corriam, nem mesmo num dia de tanta chuva.
Quando Gjorg saiu, a chuva diminuíra ainda mais, porém o ar estava extremamente úmido.
Também era um dia extraordinário, um dia úmido, mas de uma umidade pobre, sem chuva, sem neblina sequer, para não falar de relâmpagos, que seriam um luxo inconcebível.
A chuva diminuía a tal ponto que parecia que iria parar, mas voltava a apertar em seguida.
No nevoeiro, seu perfil não parecia nem alto nem baixo, talvez extenso, quem sabe um bloco compacto.
Lá dentro, reinava a penumbra.
Era um fogo triste: a lenha, molhada, fazia mais fumaça que chama.
Sentiu o cheiro da lã úmida dos albornozes.
Alguém entrou, empurrando a porta, que rangeu.
Trazia nos braços um feixe de lenha e o atirou no fogo.
As achas estavam ainda mais molhadas que as outras, e a luz bruxuleante se apagou.
Ouvia-se a chuva caindo lá fora.
Esse inverno não quer acabar.
A madeira pingava água, indicando que lá fora a chuva continuava.
As achas úmidas, que o corcunda acabara de trazer, crepitavam no fogo.
Vez por outra, gotículas de chuva miúda pontilhavam o vidro da carruagem.
Lá fora, diante da carruagem, continuavam a se suceder longos descampados, ermos, cobertos por incontáveis pedregulhos de um tom fraco de café e molhados pela chuva mais trivial deste mundo.
Guarda-chuvas?, indagou Diana em voz baixa, quando a carruagem estava a cerca de cinquenta passos dos montanheses.
É o que parece, sussurrou ele.
De onde saíram esses guarda-chuvas?
Bessian Vorps voltou a cabeça, tentando se convencer de que as velharias nas mãos dos montanheses eram efetivamente guarda-chuvas esfarrapados, da empresa ítalo-albanesa Umbrella-Hijeza, com as varetas quebradas e o tecido rasgado.
Nunca vi um montanhês de guarda-chuva, bufou ele entre dentes.
Dir-se-ia que o Rrafsh ficava no céu, e não no norte da Albânia.
A igreja ficava num morro, quase um penhasco, e fosse porque a estrada passava muito embaixo fosse por causa do tom cinzento do céu, a cruz negra parecia se mover ameaçadoramente em meio às nuvens.
Era como se nunca houvessem existido montanheses que carregavam ridículos guarda-chuvas esfarrapados e prosaicos sacos de milho nas costas.
Agora podemos dizer que entramos verdadeiramente no reino da morte, disse Bessian.
Fora a chuva fina continuava a cair, como que misturada com neblina.
Diana teve a sensação de que, não fosse a chuva, o aspecto delas não seria tão triste.
Ela julgou ter visto um pássaro e quase gritou: Um pássaro!, como se ele fosse um sinal de apaziguamento do céu.
Um torvelinho de ar frio entrou na carruagem.
A carruagem rolava outra vez por uma estrada das montanhas.
O dia era cinzento, com um opressivo horizonte encerrado nas vastidões alpinas.
A fria luz do dia penetrava parcamente na carruagem, e como se isso não bastasse, o estofamento de veludo obscurecia ainda mais o ambiente.
De fato, fazia frio, e o resplendor dos Alpes em torno parecia acentuá-lo.
Ainda bem que não está chovendo, disse Bessian.
Chuva?, admirou-se ela
Quando você viu aqueles montanheses com guarda-chuvas esfarrapados, pensou que poderia rir do Rrafsh, não é?
Mais de uma vez, a chuva ameaçou cair, porém suas gotículas aparentemente se perdiam naquelas lonjuras imensas, sem alcançar a terra.
Poucas tinham atingido as janelas da carruagem e tremulavam sobre o vidro como pequenas lágrimas.
Fazia algum tempo que Diana observava a dança das gotas, que parecia perturbar o próprio vidro.
Que inverno longo, comentou Bessian.
Parece que não acaba.
E Diana já não conseguia distinguir se aquelas duas ou três lágrimas estavam no vidro ou em seus olhos.
Daqui a pouco vai escurecer.
O céu da tarde escurecia, imóvel e opressivo.
As nuvens davam a impressão de ter se petrificado para sempre lá no alto, e se havia algum movimento em torno delas tinha como palco não o céu, mas a terra.
Ali! Ali!, tinham exclamado não poucas vezes, quase a uma só voz, mas se enganavam. Eram apenas cristas com fiapos de nuvens presos a elas.
Os olhos do casal palmilhavam o horizonte em busca da kulle, e talvez, se ela despontasse bem alto no céu, entre as brechas das nuvens, isso lhes parecesse tão natural como se ela surgisse em meio aos morros de terra.
Ela sentiu a friagem percorrer todo o seu corpo.
Por trás daqueles vidros a noite parecia suspensa sobre um abismo.
Você está com frio?
Eu disse que se agasalhasse.
Está mesmo muito frio.
Você vai se resfriar.
E ali, na janela, com a fronte enregelada pelo frio do vidro, entendeu que estava disposta a muita coisa por aquele reencontro.
Assombrados, viram o colega, que escapou de uma tempestade mais que certa.
O aposento estava frio.
O mês de abril já estava começando, todavia no céu ainda era março.
Cravou os olhos lá fora, como se quisesse se penitenciar enfrentando aquela luz que, embora fria, também ofuscava
Caso o tempo piorasse, ele queria ver quanto cereal havia de ser colhido.
Ocorrera que o tempo tinha estado excelente, graças a Deus Todo-Poderoso, e o príncipe até elogiara o feitor das terras.
Ao passo que o sangue não era como a chuva, que cai do céu.
Ao passo que no ano em que estavam, a primavera começara mal.
Aos poucos, sua mente iria acumular outra porção de bruma cinzenta.
Era algo mais que bruma e algo menos que idéia, algo entre as duas coisas, turvo, amplo e incompleto.
Era uma estiagem peculiar que as atacava, com frequência em meio às chuvas de inverno.
A luminosidade matinal, ainda que um pouco mais intensa, conservava aquela frieza hostil das longínquas paragens de onde vinha.
Seu olhar se perdeu outra vez naquele céu acinzentado.
Sua mente se estafava pelas bordas das encostas, como se buscasse saber de onde vinha aquele traço indecifrável, ou, pior, aquela ponta de zombaria na luminosidade da manhã. Mais ainda quando sobrevinham lufadas de vento e as montanhas se destacavam.
Ele se punha a percorrer em pensamento todos os sentidos daquela imensidão fria que em seu cérebro se espraiava com uma estranha configuração, algo intermediário entre um mapa e a toalha posta na mesa para um almoço fúnebre.
Clãs inteiros aceitavam passar fome para escapar da vingança, assim como outros tantos faziam o contrário, adiando a vingança estação após estação.
Os restos de neve já derreteram.
Sabe-se lá por qual motivo, julgara que os restos de neve seriam os mais implacáveis para com ele.
Corriam os últimos dias de março.
Em breve começaria o mês de abril.
Com sua metade branca e a outra, negra.
Melhor continuar ali do que se ir pelo mundo como um lenhador miserável, pelas ruas chuvosas das cidades .
... Enquanto vivera encolhido em sua aldeia, pensara que o Rrafsh era imóvel, petrificado, sobretudo no inverno.
Tal como a gota d’água que tremula de leve sobre uma flor de pessegueiro e de súbito cai -, o dia quebrava e acabava.
Abril começara, mas mal se anunciava a primavera.
Os troncos ainda não estavam cobertos de brotos.
Só de quando em quando surgia uma faixa de claridade sobre os Alpes.
Já era tempo de chegar a primavera.
Em suas noites (que fragmentos de sonho tratavam de preencher desordenadamente, assim como raras estrelas tentam compor um sombrio céu de outono), aquele olhar.
A luz da lua sobre a copa de uma nogueira próxima lhe pareceu insuportável.
Lhe veio à mente, sem que pudesse dizer a razão, uma frase que ouvira anos antes, num dia encharcado de setembro.
era a carruagem do bispo da província vizinha, que viajava mesmo com tempo ruim
A raiva, seguida da discussão, tinha a capacidade de superar de golpe estados de apatia que pareciam sem saída, assim como uma tempestade dissolve um mormaço sufocante.
Anoitecia.
Pouco depois o luar banhou a estrada.
À luz da lua, a estrada parecia feita de vidro.
Dir-se-ia que o gélido clarão da lua o ajudava.
O luar clareou duas ou três vezes os joelhos dela.
O dia estava meio nublado, meio claro.
Havia, aqui e ali, numa extremidade ou na outra, um pouco de claridade.
A neve começava a se fundir.
De um e de outro lado se perfilavam as kulle de pedra, que pareciam ainda mais severas à luz do dia.
O sol desbotado que incidia obliquamente sobre as pedras das paredes as tornava ainda mais desoladas.
As linhas das janelas estreitas, os raios desbotados do sol, não revelavam nada.
Era um medo semelhante ao que experimentara uma noite de inverno em Tirana…
A tarde lançava uma luz suave sobre o descampado.
O ar dava a impressão de estar mais quente.
Os dias estão se alongando.
Em alguns pontos neve ainda não derretera, e o contraste com ela tornava ainda mais negros os trechos de terra.
Só trechos de terra negra, dramaticamente entremeados de restos de neve.
Sobre um espesso tapete cor de café formado por muitas camadas de folhas de estações passadas.
Agora os dias estão se alongando.
Sim, estamos em abril.
Lá fora, anoitecia.
O crepúsculo, auxiliado pela bruma, cobria tudo rapidamente.
Ele teve a impressão de ver por trás dos vidros da carruagem, em meio à névoa, um homem montado numa mula.
Embora caminhasse sem parar desde o nascer do sol, ele calculou que precisaria de mais um dia.
Ergueu a cabeça em busca do sol, que estava encoberto pelas nuvens mais altas.
Aos seus olhos, ainda ofuscados pela claridade, ela pareceu repleta de pequenos reflexos.
Naquele dia todas as suas preocupações estavam relacionadas com o céu e a marcha do sol através dele.
A estrada, que outra vez se apresentou repleta de luz ao seu olhar ofuscado.
Só via aquelas cintilações avermelhadas.
Muitas vezes ele pensara que afinal ela surgia, mas a cada vez ela desaparecera como se voasse para o céu.
Em lugar dela enxergaria apenas uma mancha confusa, tal como o sol atrás das nuvens naquele dia, parecendo um ramalhete de rosas esmagadas.
Pensou, e pela terceira vez ergueu o olhar para o céu.
Gjorg recordou os cabelos da bela mulher da cidade.
Se a luz do sol incidisse sobre a cachoeira, suas águas se assemelhariam a eles.
Ele ergueu os olhos para o céu.
Era como se as rosas esmagadas por trás das nuvens agora estivessem levemente mais encarnadas.
Os cumes das montanhas, esbranquiçados pela neve, recuavam sempre mais.
Gjorg ergueu a cabeça e deu com a mancha do sol atrás das nuvens.
Precisava encontrar um refúgio para encontrar o cair da noite.
Ele estava inteiramente só sob o céu.
Ele olhava em volta, frio.
Chegaria até a estrada sob bessa e por ali ficaria, até cair a noite.
Tinha o mesmo velho calçamento, estragado aqui e ali por muitos cascos e chuvas.
Aqui esperarei a noite.
De tempos em tempos Gjorg erguia os olhos para o céu.
O outro indicou o céu com um gesto.
Avistei-a ontem à noite, da Estalagem da Cruz.
Deixei-os lá à noite.
Ergueu a cabeça à procura dos rastros do sol nas nuvens.
Uma misteriosa bruma esbranquiçada caíra sobre elas.
Sentiam-se no ar as primeiras friagens do crepúsculo.
Enxergava alvos restos de neve que ainda não derretera.
PROCEDIMENTO
Recolha de frases do texto de origem com referências ao clima, reorganização dos parágrafos (uma frase por parágrafo) e remoção de marcas gráficas indicativas de diálogo.
FONTE
“Abril Despedaçado” – Ismal Kadaré (trad. Bernando Joffily, 2001, Companhia das Letras)